É bem provável que eu tenha ouvido falar na Charing Cross Road pela primeira vez no cursinho de inglês. Pode também ter sido no guia de viagem comprado para minha primeira temporada em Londres, no final dos anos 90, não há mais como saber. Sempre foi “a rua das livrarias”; ou “a rua da livraria“, por causa do filme 84 Charing Cross Road, dos anos 80.
Nos meios que eu frequentava, cheios de alunos e colegas de estudos da língua inglesa, vira e mexe alguém falava do Anthony Hopkins, do vai e vem de cartas. O cenário da história virou uma espécie de endereço mítico, a livraria do filme do Hopkins. Mas Londres tem distrações demais, e nas vezes em que me perdi na Charing Cross nem me lembrei do número 84. Sempre que alguém falava no assunto, eu pensava “ah, nunca procurei o número 84; quem sabe na próxima”. Afinal, eu ia gostar de visitar a livraria do filme… que nunca vi.
Acho graça no vínculo que vejo entre o título em português e a minha relação com ele: Nunca te vi, sempre te amei. Pois foi assim: eu amei a história desde que me contaram pela primeira vez (ou li sobre, não sei mais) porque gostei do conjunto do que me disseram: uma amizade por correspondência entre alguém de Nova Iorque e um livreiro de Londres, uma livraria de livros antigos. E deduzi por vias tortas que a livraria era famosa por causa do filme que tinham feito sobre ela, e não o contrário. Mas a verdade é que o filme foi feito porque ela de fato foi palco de uma boa história. (Naturalmente, o lugar ficou mais famoso depois do sucesso do filme.)
Eu, distraída, nunca soube que 84 Charing Cross Road era a adaptação do livro de uma escritora estadunidense que, no pós-guerra, começou a se corresponder com um livreiro inglês para conseguir edições antigas que não encontrava em Nova Iorque. Nunca esbarrei com o filme em locadoras (ou ele nunca me achou) e nunca o encontro nas plataformas atuais. Pois essa semana Ulisses e eu o achamos nos corredores da internet e finalmente vi o que já amava. E agora estou aqui dizendo a todo mundo que já viu (porque todo mundo já viu): veja de novo.
Talvez vocês já tenham se esquecido, afinal. Faz tanto tempo. Talvez nem se lembrem mais que Judi Dench interpreta a esposa do personagem do Hopkins. Ou que a história se desdobra ao longo de duas décadas. Que, durante todo esse tempo, Helene e Frank trocaram cartas e livros, mas não só isso: trocaram presentes valiosíssimos, como os enlatados de carne e outros alimentos que ela encomendava de uma firma dinamarquesa e pedia que encaminhassem ao novo amigo na Londres da comida racionada (alimentos que Frank distribuía entre os funcionários da livraria). Ou talvez vocês também tenham se esquecido da toalha bordada que eles enviaram para ela. Ou que ela quase foi lá algumas vezes. Que ele contava tudo a ela. Que a livraria era linda. Que ele guardava as cartas em uma gaveta.
Eu me dei esse presente ontem, ver a história da amizade de Helene e Frank. Não gosto mais do título em português. Foi um amor, sim, mas não como o título talvez sugira. Adoro o fato de que vi e continuei amando a história, tudo que eu sabia sobre ela. Infelizmente, meu encontro adiado nunca acontecerá: no processo de enfeiamento do mundo, o número 84 da Charing Cross foi engolido por uma lanchonete de sanduíches envenenados e batatas de plástico. Mas vou tentar ignorar essa informação. A livraria existe para sempre nos olhos de quem vê o filme, como agora sei.